
contos contínuos
Por vinte anos casada escreveu sobre sua solidão...
Aos 45 anos ela deixou de existir.
Era um domingo ensolarado, tinha terminado de dar banho em seu cachorro mais rápido que de costume para entrar numa discussão, que pela sua experiência de vida, só a levaria ao sofrimento. Movida talvez por instinto de auto destruição resolveu ,mais uma vez, discutir sobre algo que a incomodou muito e apesar de ter passado a manhã toda pensando e remoendo palavras que já eram doloridas o suficiente, não se conteve e abriu sua boca.
16656 dias de vida e sua existência desmanchou-se entre os dedos de suas próprias mãos.
Nunca tinha dado muito valor à sua própria vida e não se lembrava de um dia vivido sem que o pensamento de morte lhe viesse à cabeça. Esse pensamento já lhe era tão constante que passava despercebido pela sua própria consciência e diversas vezes se assustava acordando acordada em meio a sonhos mórbidos. Apesar disso, no momento que sua existência terminou se deu conta de que aquilo do qual ela queria se livrar, ainda assim era uma vida, uma existência.
Também sabia que isso era um grande clichê, era quase óbvio que só daria valor àquilo que perdesse. Isso era devido a sua incapacidade de ser feliz.
Desligou a mangueira e lá estava ela novamente defendendo valores e morais que nem sabia direito onde os tinha adquirido. Podia ter sido num livro ou num filme, ou através de alguém que passou na sua vida e deixou somente aquelas palavras ecoando em seu arquivo cerebral. Não se lembrava de onde vinham essas ideias. Aliás, sua memória era péssima. Do tipo de pessoa que pergunta o nome de alguém tantas vezes, que em determinado momento assume que todos se chamam “queridos” ou “queridas”. Era bem mais fácil chamar a todos assim carinhosamente já que não se lembrava do nome de ninguém que não convivesse todos os dias sem grandes intervalos.
Não entendia direito porque as pessoas se ofendiam com o fato de não lembrar o nome. Para ela isso era tão normal, mesmo porque, quando alguém não sabia seu nome ela corria para se adiantar e eliminar o sofrimento e constrangimento da situação, arranjando um jeito de incluir seu nome em algum momento da conversa. Isso não fazia sentir se mal ou menosprezada, não levava esse esquecimento como algo pessoal ou de desprezo por parte do pobre esquecido que agonizava em sua frente.
A conversa se iniciou, como sempre, por uma bobagem, mas tomou proporções que mesmo todo seu pessimismo encrustado permitiu que adivinhasse onde tudo iria chegar. Mesmo durante a conversa foi alertada de que o melhor era se calar. Ora sua mente lhe enviava sinais, ora o próprio objeto da discussão pedia para que ela parrasse.
Que força estranha era essa que mexia dentro dela a ponto de ignorar o perigo e se mover em direção ao abismo de forma tão inconsequente. Enquanto se dirigia a beirada desse abismo, se perguntava como realmente era alguém dotado de inteligência já que essa atitude de ir contra o instinto de sobrevivência apenas revelava a sua burrice extrema?
Ela sempre conheceu o abismo, desde muito nova o visualizava com pavor e essa imagem lhe trouxera terríveis pesadelos durante toda a sua vida, principalmente na infância. Aquela sensação de que nada lhe sustentava e que não havia onde se agarrar. Um cair sem chances de que algo a pudesse salvar. Isso lhe rendeu ao longo da vida uma abisso fobia aliada à acrofobia que a irritava, pois se sentia infantil e tola diante de algo que não conseguia controlar em si mesma. Subia escadas de quatro e em elevadores com vidro paralisava enquanto seus filhos se divertiam grudando o nariz para ver o mundo lá embaixo. Nunca comprou nem morou em apartamentos acima do terceiro andar sabendo, desde muito nova, que cedo ou tarde ela se jogar, era um fato incontestável.
Agora naquele momento talvez esse pavor tivesse sumido...
399748 horas, contando que tinha nascido as 10:00 horas e estava perto de 13:00 quando a conversa se iniciou e após uma hora de tentativas e choros a frase lhe foi dita, percebeu que aquele momento era o abismo e não teve medo, só tristeza. Sempre ouvira falar da força das palavras e realmente acreditava nisso, não por uma necessidade exotérica de se explicar as coisas, mas sim pela dor que muitas delas já haviam lhe causado. Claro que ser quem ela era não ajudava as pessoas a lhe dizer lindas palavras e, estando com 45 anos, isso tinha se agravado.
Quando criança as palavras dolorosas eram geralmente em relação a sua aparência. Não que ela fosse assustadoramente feia, mas era um meio termo que não agradava muita gente, ainda mais tendo uma irmã que roubava, sem intenção a principio, toda a atenção de quem as rodeava. Magra, olhos e testas enormes e baixa estatura, faziam com que ela se assemelhasse a um extra terrestre. Não tinha essa consciência quando criança, só veio a notar essa semelhança quando, anos mais tarde, adulta, casada e com filhos se deparou na casa da mãe dela com uma foto sua com uns 5 anos. Ficou perplexa ao fazer essa associação, ao mesmo tempo se perdoou por ter sido tão triste quando menina. Aliás essa sua tristeza estava estampada na foto também. Conseguia enxergar até seus medos e pesadelos naqueles olhos gigantes. Seu nariz continuava tão pequeno como quando tinha 5 anos e reparou que talvez ele era o traço mais extra terreno que possuía. A única coisa que parecia ser diferente de hoje era o tamanho de sua boca. Quase imperceptível na foto.
Enfim cresceu com duras palavras.
Talvez fosse mais fácil diante do que relatei, pular a sua adolescência, mas não quero que ela se torne uma ficção exagerada e sem nexo. Sua inteligência também era questionável... Como só tinha a si mesma como referencia de excelência e algumas notas nas provas da escola, preferiu acreditar que estava na média. Não era burra, mas não se destacava em nada. Sem beleza e sem qi alto, ficou difícil não passar despercebida por todos que conviviam com ela e acabou com contar apenas consigo mesma. Divagava e pensava sobre tudo em completo silencio, achando que isso era como todos viviam. Tinha seus pequenos livretos que escrevia pensamentos e só muito mais tarde os mostrou para uma amiga. Essa foi a primeira pessoa que a descobriu inteligente, porém em sua primeira grande briga no casamento queimou todos os livretos que a fizeram descobrir inteligente, deixando apenas um.
Era proposital que agora neste domingo de sol, com corte final de sua linha com a existência esse queimar de pensamentos escritos viessem a sua lembrança. Percebeu que sua não existência estava sendo programada e projetada a longo tempo e que, nada mais poderia ser feito. Porém num ultimo suspiro para de entender o que estava acontecendo, tentou lembrar quando foi que esse projeto se iniciou e a primeira imagem que teve foi da sua primeira comunhão.
Ela brincava com seus irmãos na cama dos seus pais, seu pai sentado encostado no travesseiro. Era a tarde anterior a sua primeira comunhão e ela tinha depositado muitas expectativas em relação à cerimonia. Devido a lavagem feita no catecismo passou a acreditar que essa era sua única esperança de ser “salva” e no seu íntimo “se adaptar”. Seu pai parando a brincadeira perguntou a ela quais eram as palavras que deviam ser ditas mentalmente quando de fazia os 3 sinais de cruz, um na testa outro na boca e mais um no peito. Um frio em sua espinha anunciou o fato: que algo estava errado. Não lembrava as palavras e o suor frio e a tremedeira tomaram conta de seu corpo impossibilitando que o esforço mental tivesse sucesso. A vontade de fazer xixi e um coração disparado, finalizaram sua s esperança. No outro dia, realizou a cerimonia como um fantasma e neste dia descobriu como era fingir e mentir diante de todos.
Ser um fantasma foi sua alternativa por muito tempo e agora sem sua existência seria fácil recorrer a esse recurso da infância.
Exatamente quando seu cérebro encontrou essa solução para palavras tão duras, lembrou-se que já tinha enxergado essa falta de existência em outra pessoa...
Sua mãe.
Após aproximadamente 23984880 minutos, de ter saído da barriga de sua mãe, voltava a pensar nela. Coisa bastante incomum, já que não pensava muito em sua mãe.
Seus olhos sempre tiveram algo mais que nunca compreendeu. Os gritos diários, as humilhações, a total inexistência de preocupação dos próprios filhos com a sua existência e a dominação paternal, devem ter lhe roubado a vida também. Qual teriam sido as palavras que deram o golpe final? Impossível saber disso agora, mas ficou estarrecida ao perceber essa sua semelhança com a situação da mãe e se esforçava para entender porque tinha tomado tantos caminhos iguais. Como tendo sido tão crítica em relação a situação de sua mãe, pode cair nas mesmas ciladas? Num mesmo estereótipo de casamento e vida familiar?
Também agora pouco importava, era tarde demais. Continuaria viva e sem existência ou encarava a vontade suicida de não ter nenhuma delas. Sem culpa.
Via sua cor desaparecer e se transformar num ser transparente que perambulava pelas pessoas apenas seguindo a realização de tarefas pré determinadas. Não haveria mais forças para brigar, acreditar e tentar influenciar nada nem ninguém. E por fim, aquela tristeza tomou conta do restinho do seu peito, a última parte a deixar de existir. Apagou-se como uma pequena chama de uma vela, aquele pontinho vermelho antes da fumacinha que sinaliza que o fogo se foi.
Ela tinha 45 anos, ou 16.656 dias, ou 399.748 horas, ou aproximadamente 23.984.880 minutos, ou ainda, perto de 1.439.092.800 segundos.
Amorfa
Agora que o fato estava consumado, sua passagem transparente exigia novas ações. Novas maneiras de fingir que, enfim ,estava totalmente mudada e adaptada. O sofrimento que passara em toda sua existência tinha chegado ao fim, não precisava mais se encaixar nesta vida tão alheia a sua cabeça e ao seu jeito de pensar. O esforço por se adaptar não era mais necessário, não precisava mais, de agora em diante nem tentaria. Bastava fingir essa adaptação, sem culpa.
Sem existência não precisava mais se encaixar a nada, nem lugar nenhum e tinha se tornado uma figura amorfa, facilitando fingir ser de outra forma. Alias, qualquer forma que fosse exigida no momento.
Sabia que estava diante de uma tarefa homérica e que após tantos anos de tentativa, deixar de tentar seria um parto...
Pensar em parto... Como se ela tivesse realmente sentido as tais dores do parto. Não tinha nem ideia delas... No final de um mês de janeiro de calor insuportável, após ter trabalhando mais de 10 horas numa cozinha fedorenta de restaurante, uma simples pergunta do médico: você tem certeza que não prefere uma Cesária? E lá se foi toda uma ideologia pelo parto natural. No outro dia, uma Cesária trouxe o menino de olhos azuis. Na segunda filha, menina do sorriso farto, as desculpas de fazer uma laqueadura, fechava de vez com as tais ideias naturebas.
Portanto, essa mudança seria o primeiro parto em toda a sua vida, que nem era tão longa assim e nem tão vida assim.
Deixar de existir, abria um mundo de possibilidade e isso estava totalmente de acordo com as teorias da física quântica que ela era fascinada, mas que não compreendia direito.
Porém um pensamento cruel e egoísta tomou conta de sua cabeça.
Sem existência, nada sobrava dela neste mundo. Era um sentimento/pensamento que lhe provocava vergonha. Porque sua existência devia ser considerada? Porque queria que sobrasse algo? Tentou evitar o pensamento, mas ela reconhecia o sentimento que rondava sua alma.
Era o mesmo sentimento que tinha em sonhos que se repetiam de forma angustiante, o tipo de sonho em que se tenta, de todo o jeito, chegar a algum lugar, ou tentar pegar algo; ou tentar ir ao banheiro... Sempre nestes sonhos ela acordava dentro do próprio sonho para alertar ela mesma que precisava acordar e ir ao banheiro ou faria xixi na cama. Prontamente ela despertava e aliviada por seu incrível cérebro ter criado essa estratégia tão fascinante, ela ia ao banheiro e voltava a dormir.
Já tinha refletido sobre a analogia entre as situações. Bastava acordar e se entregar logo ao seu cérebro. Era um sentimento de impotência para mudar algo fisiológico, um sentimento de escravidão que tinha em relação ao seu corpo e suas exigências.
Neste caso, a escravidão em realizar o que estava em sua cabeça ou então, enlouqueceria com aquele pensamento a perseguindo dia e noite.
Perseguição era outro dos seus sonhos repetitivos. Geralmente era numa mesma casa que estava numa colina e tinha vários andares usando o próprio declive da colina. Parecia pequena, mas por dentro era enorme, sem fim, com diversos quartos num labirinto que ora ela entendia, ora andava em círculos. Sempre algo a perseguia. Lembrava que, entre todas as vezes que visitou essa casa, uma ficou muito marcada: um leão a perseguia. Correndo, passava pelas coxias de um palco que ela não usaria nunca, entrando em seguida um salão de janelas e portas grandes de vidro rodeadas de muitas árvores.
E se assustou ao perceber como essa casa dos sonhos de perseguição, era parecida com a que ela estava para comprar. Em escala menor, a casa nova também tem pavimentos que aproveitam o declive, portas e janelas de vidro e árvores bem perto.
Outro pensamento começava a persegui-la: o de que isso era um sinal! Estava destinada a viver sem existência nesta casa que, em escala maior, visitava seus sonhos. Rapidamente a palavra destino foi bloqueada por sua inteligência que relutava com isso por anos. Lá estava o resquício da existência perdida. Sua inteligência destruído mitos.
Parou e acreditou no destino, agora amorfa acreditar nisso era bastante coerente.
Aceitou ao mito e seu pensamento anterior voltou: O pensamento cruel e egoísta que combinava com a amorfabilidade nova. Ninguém vai saber que estivera aqui e embora isso não importasse a ninguém, devia escrever e deixar registrado:
Estive aqui com uma existência que se desfez, mas ainda assim, uma existência!
Assim começou seu livro. Amorfo, mas livro.
Bichos em mim
Resenha - Bichos em Mim
O conto “Bichos em mim” narra a aventura de uma mulher que sempre sonhou viver numa casa rodeada de árvores e isolada de todos. Durante a quarentena ela realiza este sonho de se afastar das áreas metropolitanas e se muda para uma casa com varanda e sol. Mas cuidado com o que você deseja e sonha, pois na maioria das vezes costumamos idealizar aquilo que não conhecemos.
Os dias passam serenos, porém aos poucos ela começa a vivenciar as surpresas que essa escolha traz para o seu dia a dia. Sempre acostumada a conviver mais com gente do que com animais, ela vai vivenciando a mudança de hábitos, não por que escolheu, mas por que foi escolhida.
Vai tolerando no seu convívio diário diversos pequenos animais e, de certa forma, criando apreço por eles. Chega até, a se divertir com os novos moradores da casa, dedicando parte de seu dia à contemplação dos mesmos.
Mas nem tudo são flores, mato e árvores, pois o fato é que, mesmo às vezes, desejando a não convivência com gente, a solidão nos afeta e nos transforma distorcendo nosso discernimento sobre o que queremos ou não.
São bichos de dentro e de fora da gente. Viagem intensa no interior de uma brincadeira de olhar para dentro de si com coragem e distanciamento suficiente para enxergar os maiores e os menores medos que, por vezes, carregamos conosco ao longo da vida.
Verdade seja dita: tudo ganha proporções gigantescas em tempos de isolamento.
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Moro numa casa rodeada de mato, quer dizer, árvores! E por ter vivido anos em apartamento com vistas para outros apartamentos me considero uma privilegiada. Abro minhas janelas e vejo mato. Árvores, sendo mais justa.
Porém como boa metropolitana tive que passar por modificações profundas para entender o que pode acontecer àqueles que passam a vida falando aos quatro ventos que um dia, um dia moraria numa casa com mato ao redor. Árvores, árvores!
Claro que, por mais modificações e adaptações que pudessem passar pela minha cabeça, nunca conseguiria imaginar o que iria acontecer quando, finalmente, fosse concretizar as minhas palavras proféticas de morar rodeada de árvores (ufa!).
Deslumbrada eu passei os primeiros meses em completo êxtase e paixão pela minha casa nova, não tinha vizinhos, barulhos, o sol batia de tarde na varanda de frente e me deliciava vendo todo aquele mato verde ao meu redor. Não trancava nem porta nem janelas… Lugar perfeito para passar a quarentena esquecendo de tudo e de todos.
Mas aos poucos percebi que nem tudo era contemplação…
Desde que mudei para cá, me acostumei a encontrar bichos, insetos coloridos e outras coisas mais na minha rotina diária, mas foi durante a quarentena que estreitei laços com esses visitantes, nem sempre bem desejados.
Há muito tempo, embaixo do meu escorredor de pratos mora uma perereca. No início achei que era somente uma visita esporádica e muitas, muitas vezes, com o saquinho de plástico enrolado na mão, após o susto e o grito, tive que retirá-la da minha pia e jogá-la do outro lado da rua. No outro dia de manhã, ela sempre reaparecia no mesmo lugar embaixo do escorredor de pratos. Até hoje me pergunto se é a mesma ou se aquela lá, a primeira, contou desse lugar incrível para morar, para suas amigas. Pensando com calma era uma ótima escolha, essa dela, local úmido, mármore branquinho e sempre uma panela cheia d'água para poder nadar a noite, porque, vamos e venhamos, não gosto de lavar a louça antes de dormir. Fora as formigas e insetos que sempre apareciam. Enfim, joguei fora a perereca tantas vezes que acabei me conformando, me acostumando com aquela que insistia em morar embaixo do meu escorredor de pratos. Nessa quarentena, então, resolvi desencanar de expulsá-la e deixá-la em paz.
Mas como, miséria pouca é bobagem, e assunto de perereca também, ela não era a única nesta casa com mato em volta. Eita, árvores!
Tinha também, uma outra perereca que vivia no meu banheiro, para ser mais exata, ela morava num dos cantos do alto do teto, bem na encruzilhada dos ângulos da parede, sabe? Esta era abusada, cada dia ela me esperava com sorriso no rosto, e tenho fotos para comprovar, um dia grudava na mangueira ou na torneira do chuveiro, no outro dia, estava no canto do azulejo, onde mantinha visão ampla do vaso. Ora esperando para observar o meu banho, ora me olhando no vaso. E era sempre a mesma Força Tarefa, eu com saquinho plástico enrolado na mão, após o susto e o grito, retirava a meliante, (ou o meliante), do banheiro. Claro que no outro dia, lá estava ela novamente. Após dias de vai e volta, nesta quarentena, resolvi novamente desencanar e deixá-la por lá perambulando no meu banheiro e me observando no banho ou no vaso. Inclusive ela virou uma das fotos mais comentadas no whats da família e no meu insta.
A minha sorte é que com o passar dos dias a porta do meu banheiro começou a ranger e ela esperta, sempre que estava passeando na minha ausência, quando ouvia o
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barulho da porta, pulava para um de seus esconderijos, assim quem levava susto era ela e não eu.
A terceira perereca resolveu se alojar embaixo da estante da sala. Este local de escolha, eu só entendi no dia que a vi saindo pela pequena janela que dava para a lavanderia úmida e cheia de baldes com restos de água, infestada de pernilongos devido ao matagal que teimava em crescer cada vez mais perto; um paraíso, na visão de uma perereca. Esta, nunca nem tentei tirar, só encontrava com ela quando resolvia fazer faxina na bagunça que sempre se formava na estante, ou tinha que ir à lavanderia durante a noite, coisa raríssima, pois tinha que desviar do matagal invasor.
Ela era reclusa e, na maioria das vezes, nem lembrava dela, portanto nem percebi quando a coloquei na lista de moradores da casa, não seria agora, em plena quarentena, que iria me importar com esta inquilina.
Mas não eram só pererecas, eu quero falar sobre as lagartixas!
São tantas que talvez eu nunca saiba o número correto, algumas vivem atrás da nossa televisão e, enquanto assisto Netflix, elas fazem o serviço de perambular pela parede e comer o máximo de pernilongos possíveis. Correm de um lado para o outro, uma luta pela sobrevivência comendo insetos, os “Infernais pernilongos”, como eu gritava a noite com eles. Às vezes, as lagartixas brigavam entre si e, na maioria das vezes, esta cena é mais interessante do que o que está passando na televisão.
Certo dia apareceram umas bem pequenas, por isso acredito que ali já mora uma família, talvez já sejam gerações e gerações morando atrás da minha televisão. Nesta quarentena elas viraram um show à parte e comecei até a fazer apostas: Quem será que vai sair primeiro? Quantos pernilongos irão comer? Irão brigar entre si? Cada dia eu elegia uma lagartixa preferida e cheguei até a criar uma tabela para contagem de pontos.
Agora vamos às centopeias, as enfadonhas, lentas e graciosas centopeias. Estas entram e saem por toda a casa, estão nos banheiros, embaixo das camas, dentro dos armários, na pia da cozinha ou subindo no vidro das janelas. Observá-las durante a quarentena era a minha meditação, me provocando um sono terrível e fora de hora, mesmo sabendo que hora, era pouco importante neste momento. Não as mato, não por empatia, mas por lembrar da gosma no meu pé após um pequeno estalo vindo do chão; portanto, lá vou eu dando pequenos empurrões com o pé para jogar no quintal. No outro dia... Cá estão elas em seu plano de invasão, se espalhando por todos os lugares. Creio que começou com uma e, como no caso das pererecas, a notícia se espalhou. Tenho em relação a elas a mesma dúvida que continuo tendo com as pererecas: Serão as mesmas? Nesta quarentena resolvi, então, desencanar, me rendendo a invasão Centopédica. Deixei elas por ali e aprendi a olhar para o chão o tempo todo, com medo de esmagá-las.
As aranhas. Estas eram mágicas e imortais, pois logo na primeira faxina na casa nova, destruí suas teias e com a vassoura, sem dó, pensei ter esmagado todas. Só que aranhas têm suas defesas e pelo o que pesquisei, se encolhem e fingem que estão mortas, voltando no mesmo dia para o local que estava sua antiga teia. Semana após semana lá estava eu com a vassoura vasculhando o teto da casa para dar fim nesses bichos, nem um pouco desejados. Essas não dão para contar, porque eram de tamanhos e cores variadas e em tantos lugares que começou a me dar preguiça, outro efeito da quarentena. Deixei prá lá e eles tomaram conta do teto, só quando elas extrapolam no tamanho da teia sou obrigada a interferir.
A quarentena afetou tanto minha relação com esses bichos não tão desejáveis, que coloquei até nomes neles. A perereca da pia se chama Salete, a abusada do banheiro,
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Sabrina; e a da estante, Suelen. A lagartixa maior Onofre, a segunda Izilda, as outras vão por numeração Onofre 2 ou Izilda três, assim por diante. Ainda tenho dúvida se são 13 ou apenas 7 lagartixas… As centopeias e aranhas, por serem muitas, só chamei de centopeias e aranhas mesmo. Não conseguia, mesmo em meditação, diferenciá-las ou contabilizá
las.
Os dias foram se passando sem muitas novidades, mas nessa quarentena tive uma visita completamente inesperada. E agora, começa o que realmente vim contar. Eu acordei normalmente, como todos os outros dias, sem saber exatamente que dia ou hora era isto. Efeito da quarentena, como todos sabem. Fui ao banheiro conferir se Sabrina estava lá e aproveitei para escovar os dentes e esvaziar a bexiga sob os seus olhos atentos. Caminhei até a cozinha para conferir se Salete estava bem e fazer o café. Salete estava dormindo, como toda manhã. Já tinha dado bom dia para umas três ou quatro centopeias e um oi para cada aranha em sua teia que consegui ver. Não me esqueci de Onofres e Izildas, encostando a boca entre a parede e a televisão e gentilmente falando: Bom dia para todos! Terminei de fazer meu café olhando romanticamente para o cenário bucólico que se moldava pela minha janela, com a xícara na mão fui caminhando para a sala em direção à varanda.
What the fuck?!?
Parei, engasguei com o café, derrubando um pouco no pijama e no chão. Meus olhos só não eram maiores por não conseguirem saltar do rosto... o coração, não sei se parou ou não, pois não o sentia.
What the fuck?!?!
Mãos trêmulas, suor frio e ainda parada diante do que via.
What the fuck?!?!?!?!
O que realmente era aquilo?
Estava diante de um animal, um bicho, completamente inesperado, muito mais inesperado e com certeza muito mais indesejado do que os que já viviam por ali. What the fuck?
Após o tempo passar sem que eu não conseguisse me mexer, muito menos pensar, com o corpo paralisado olhei para os lados, mexendo o mínimo que podia, mas...Não tinha ninguém para me confirmar o que eu estava vendo. Eu morava sozinha e apesar de todos os bichos que viviam ali, nenhum poderia me confirmar nada.
Os olhos voltaram para o Bicho e na minha cabeça eu repentina incessantemente: What the fuck!?
What the fuck?!?
What the fuck?!?!
O que está fazendo aquele animal aqui?????
Talvez eu estivesse alucinando,
Talvez ainda estivesse dormindo.
Talvez fosse a quarentena…
Para ter certeza da minha lucidez, desparalizei e disparei para a cozinha, voltando com uma vassoura na mão. Depois, como em todas as histórias, me belisquei. Sim, eu estava acordada.
Agora restava testar minha lucidez com o cabo da vassoura me aproximando e cutucando o Bicho. Feito!
Era fato: ele existia e estava na minha varanda.
What the fuck?!?!?!
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Só pode ser brincadeira, como é que esse animal veio parar aqui, caramba! Que eu saiba ele não é nem do Brasil...
What the fuck?1?!?!?
Meus olhos ainda estavam arregalados, o corpo meio curvado e apenas os braços se mexiam enquanto eu me perguntava:
What the fuck?!?!?!?!
No mesmo estado de perplexidade me joguei sentada no sofá, larguei meu corpo, mas meus braços continuavam a perguntar:
What the fuck?!?!?!?!?
Ele estava ali bem na minha frente, como todos os outros bichos que já habitavam a casa. Lembrei que todos eles estavam morando ali sem terem pedido nenhuma permissão, só estavam. Foram aparecendo, chegando, chamando os amigos, trazendo a família. E, como todos os outros bichos que eu já tinha assumido como parte da família, este novo bicho realmente não se importou com a minha presença, continuava ali, sentado na minha varanda.
What the fuck?!
Passei o dia parada, sentada no sofá, até que o dia se foi e simplesmente caminhei para o quarto dormir. Antes de fechar a porta do quarto me fiz, pela última vez, a pergunta: What the fuck?
Confesso que alimentei a esperança de que no dia seguinte, minha varanda estivesse desocupada. Por outro lado, fiquei pensando que seria difícil dar nome para esse Bicho…
Dormi e acordei na mesma posição, tenho a impressão que, mesmo dormindo, meus olhos continuaram tão arregalados quanto no dia anterior; dormi com os olhos abertos e grudados no teto que insistia em projetar a imagem do Bicho.
Era dia, o sol estava alto, eu sabia, mas era quarentena e não fazia a menor diferença se eu levantasse da cama ou não. Virei de lado, percebendo o corpo doído por ter ficado horas na mesma posição, acertei o cobertor e fixei o olhar na parede do lado da cama com um espelho grande. Me lembrei do Bicho novamente. Fechei os olhos e virei de lado, vendo agora a porta do banheiro entreaberta.
Frio na espinha, nunca deixo a porta do banheiro entreaberta, nunca! Olhei para a porta do quarto e ela estava escancarada…
Eu nunca, nunca deixo a porta do quarto aberta, muito mesmo, escancarada! Recolhi o corpo num pulo só, encostando no beiral da cama sem respirar direito e cobri a cabeça com o cobertor. Neste momento percebi o quanto era ruim morar sozinha, principalmente cercado de mato. Sim mato! Árvores o cacete!
Não havia como pedir socorro, não havia ninguém por perto e a ilusão de não estar sozinha por conta dos habitantes não convidados e que, agora devido a atual novidade, eu os considerava desejados, tinha sumido.
Estava só, a porta escancarada, a do banheiro entreaberta e um bicho que talvez, talvez, ainda estivesse na varanda, mas poderia estar em qualquer lugar neste momento… O ar embaixo do cobertor começava a ficar quente e sufocante, culpa da minha respiração ofegante naquele momento, eu só escutava o som do meu coração que desesperadamente tentava sair correndo, mas estava preso dentro de mim; sentia-o batendo em meus ossos pedindo para fugir. Minha mente sabia que precisava fazer algo, mas nada me surgia como saída daquela situação, mesmo fechando os olhos e tentando controlar a respiração eu não conseguia melhorar. O ar debaixo do cobertor começava a
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me sufocar, estava irrespirável, mesmo sabendo que era cientificamente impossível, parecia não ter mais oxigênio no meu esconderijo improvisado. Comecei a sentir a falta de ar, nada entrava nos meus pulmões, o suor escorria e o ar não entrava...não entrava…, o calor era desesperador e o ar não entrava. Num gesto único e descontrolado, pulei da cama e joguei o cobertor o mais longe possível, ficando encostado na parede estrelada feito uma panqueca. Respirava fundo e enchia os pulmões com o ar fresco da manhã, compensando a falta que ele me fazia há alguns segundos atrás. A hiperventilação começava a me deixar tonta, mas não casava de puxar o ar, já meu coração agora tentava fugir pela boca. A situação era insustentável, meus olhos continuavam na direção das portas, uma entreaberta e a outra escancarada.
Sem pedir licença à minha mente, meus pés fugiram pelo vão maior e num salto eu estava de joelhos no sofá com os olhos grudados na porta do quarto. Certo, eu tinha ar, e não estava preso naquele cobertor. Tentava lembrar se tinha ou não fechado a porta do quarto e do banheiro antes de cair na cama petrificada, mas o excesso de oxigenação no cérebro me impedia de pensar com clareza, e na tentativa de reorganização minha mente projetou em minha consciência a imagem do Bicho na varanda.
Num outro movimento completamente involuntário, virei de posição no sofá e agora estou de frente a varanda.
What the fuck?!?
O Bicho estava lá.
What the fuck?!?!
What the fuck?!?...
What th...
Demorou um tempo para perceber que eu estava entrando no mesmo looping do dia anterior.
Isso tinha que acabar, não tinha estrutura física, mental, nem emocional para suportar estes sobressaltos na minha vida rodeada de mato. Meus olhos, que já não queriam ver, agora estavam com dó de mim e decidiram chorar, o que eles sempre faziam quando tudo estava dando errado. O restante do corpo simplesmente não fazia nada, nem tinha pena de mim, continuava indiferente. Sabia que só meus olhos não me tirariam daquele desespero, precisava de meu corpo, mas ele nunca tinha sido meu amigo, me traiu tantas vezes com tremedeiras diante dos homens que amei; com o suor nas mãos no aperto de mão com o entrevistador; com a sonolência durante as aulas da escola.
Corpo traidor, sempre traidor.
Como se não bastasse, agora ele começava a reclamar a falta de alimento desde o dia anterior, já que tinha passado o dia no sofá, mas eu não tinha a menor intenção de satisfazê-lo, deixarei com que definhe lentamente até que reaja conforme a situação exigia.
Minha mente tenta então se organizar e meus olhos, mais uma vez com dó, vasculhavam ao redor procurando uma solução. Varanda, bicho, sofá, mancha de café, xícara caída no tapete, o bicho, parede, quarto, banheiro, Salete, não Sabrina, a televisão, Onofres e Izildas, falta alguém, centopeias e… Falta alguém!
O cobertor.
Não era, mas aceitei a organização que minha mente conseguiu realizar, não era hora para julgamentos e críticas, precisava apoiar o que não tinha me abandonado. E mais uma vez meus olhos vieram, por pena, me ajudar.
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Uma centopeia surgia rastejante num pequeno vão entre a porta da varanda e o bicho. Inesperadamente percebi que ele, o Bicho, também olhava a centopeia. Ele vai comê-la e assistirei isso sem esboçar nenhuma reação, pois não tive reação nem para me salvar, quanto mais bancar a heroína por conta de um bicho que nem desejava ter como companhia.
A enfadonha e graciosa centopeia ignorava o Bicho na varanda, somente seguia seu caminho aleatório, balançando as antenas de um lado para o outro. Ela era lenta e nossos olhos também, o tempo era lento e nossas vidas, mais ainda. Aquilo me acalmou. Sentada no sofá o dia passou e nenhum de nós tirou os olhos da centopeia.
Num movimento tão lento quanto o tempo que vivíamos a quarentena, o Bicho finalmente se mexeu, deitou-se de lado e dormiu. Repeti seu movimento e lentamente também dormi. Sonhei com borboletas.
Acordei num sobressalto e sendo o bicho a primeira visão, um rápido estalo de consciência me fez repassar todos os fatos ocorridos após a xícara de café. Varanda, bicho, susto sofá, mancha de café, xícara caída no tapete, o Bicho, parede, quarto, banheiro, Salete, não Sabrina, a televisão, Onofres e Izildas, falta alguém, centopeias, aranhas, cobertor, susto, perplexa, sofá, cama, teto do quarto, espelho, porta do quarto, fuga, sofá de novo, perplexa de novo, centopeia, sono…
Ótimo estou ciente de tudo, não concordo, não aceito, mas estou ciente. O dia lá fora, não ajudava em nada, estava frio e chuvoso. Talvez um dia ensolarado fosse bem melhor para a minha situação, o sol poderia ser um revigorante para meu corpo e esquentasse as engrenagens do meu cérebro, conseguindo com isso encontrar uma saída.
Por que motivo eu havia feito a escolha de ir morar sozinha, numa casa rodeada de mato? A cidade e os prédios metropolitanos me espremiam o suficiente para que eu não tivesse espaço para reflexões, não tinha tempo para bichos desejáveis ou não.
Bem não adiantava chorar pelo leite derramado e estava no terceiro dia desta situação inesperada. Sem comer, nem beber, nem me lembrava de ter ido ao banheiro. Agora não tinha mais jeito, assim que tomei ciência disto a bexiga reclamou e tentando não me movimentar bruscamente, fui saindo do sofá e arrastando pelo chão até passar pelo quarto e chegar na porta do banheiro, ela rangeu e desesperadamente corri para dentro e num gesto só tirar a roupa, sentando no vaso. Sabrina estava na encruzilhada dos azulejos.
Por alguns instantes tive saudade dos dias que somente convivia com pererecas, lagartixas, aranhas e centopeias.
Agora tinha que lidar com um Bicho enorme e peludo na minha varanda. Se já não tinha coragem para desalojar os antigos moradores, como é que iria fazer para desocupar a varanda? Nem sabia se aquele Bicho mordia. Como vive? Do que ele se alimenta? Como se reproduz? Todas essas perguntas não respondidas lhe deram uma baita dor de cabeça, sentia se fraca e com tontura, pensou estar ficando doente…
Será que esse Bicho me passou alguma doença? Já não bastava toda essa história de pandemia ter sido causada por bichos mortos e mal higienizados no outro lado do planeta, agora corria o risco de morrer por conta de outra história de bicho.
Levantei do vaso rapidamente vestindo as calças do pijama e me olhando no espelho bem de perto procurando algum indício de doença contagiosa transmitida por animais. Arregalei os olhos, abri a boca e investiguei todo o meu corpo a procura de manchas, perebas ou outros afins doentícios. Nada.
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Febre? Será? Abri o armarinho embaixo da pia do banheiro procurando a malinha de primeiros socorros e senti uma tontura forte tendo que me sentar no azulejo frio. O pânico começava a tomar conta de mim e o suor nas mãos fazia a procura pelo termômetro ficar bem mais confusa. Coração acelerado. Imaginava que morte mais estúpida eu teria ali sozinha no meio do mato, nem para as estatísticas eu iria entrar.
Com o termômetro na boca sentada no chão lembrei que não comia a dois dias… Esperei para ver a temperatura de qualquer forma e fui me levantando devagar, estava trêmula e de fome. Não tinha febre nenhuma, mas a possível doença transmitida pelo Bicho ainda não estava totalmente descartada.
Precisava comer, mas isso significava sair do banheiro passar pelo quarto, ir até a cozinha e passar pela sala com a varanda. Ai. Por favor, não esteja mais lá, falei para mim mesma no espelho.
Abri a porta devagar e dava para ver pelo cantinho da porta do quarto que estava escancarada, uma parte do Bicho na varanda; não sabia se ele estava dormindo ou não, mas tive a impressão que ele tinha mudado de posição desde que eu tinha corrido até o banheiro em busca de alívio e proteção. Pensei em me arrastar novamente até atrás do sofá e dele conseguiria chegar até a cozinha sem ser vista. Teria que permanecer agachada e encontrar alimentos nos armários de baixo para que ele não me enxergasse. Minha cozinha era tipo americana e só era separada da sala por um balcão, mas esse plano me parecia bom.
Abri mais a porta para poder passar meu corpo e ela rangeu…. Tinha me esquecido. Fechei os olhos e fui abrindo devagar com medo do Bicho ter se mexido, mas por sorte ele estava no mesmo lugar. Continue agachada e fui me arrastando saindo do quarto em direção a cozinha lentamente, para minha completa surpresa tinham pelo menos umas cinco centopeias pelo caminho. Não desta vez, não falei bom dia, estava muito puta com essa história de bichos, se eu não tivesse tido tolerância com essa invasão animalesca da minha casa, talvez não estivesse ali, me arrastando e me escondendo de um bicho na varanda. Quem pode saber?
Enquanto me arrastava me arrependia de não ter feito, como todo mundo na quarentena, uma boa faxina na casa, continuei dando petelecos nas centopeias e faltando uns dois metros para ficar protegida pelo sofá, ele se mexeu. Frio na espinha, coração na boca, silêncio completo e respiração interrompida. Não sei se foi a fome ou o medo, mas vi minha visão escureceu e ouvi o barulho da minha cabeça no chão.
Acordei com os raios do fim da tarde batendo no rosto. Abri os olhos e novamente avistei o Bicho na varanda. Jesus, que pesadelo! Levantei a cabeça e ela estava doída, assim que coloquei a mão para acalmar a dor vi o sangue no chão; senti a dor encostando os dedos no ferimento causado pelo desmaio, era estranho ter batido a cabeça tão forte para causar um corte sendo que eu estava agachada bem perto do chão, porém tudo o que estava acontecendo já era estranho demais para eu ficar tentando desvendar mistérios menos importantes do que aquele Bicho na minha varanda…
Precisava comer, continuei meu plano me arrastando sem nem olhar para a varanda, agora era questão de vida ou morte, poderia morrer da doença contagiosa transmitida por aquele animal altamente indesejável, poderia morrer por um ataque feito por ele, mas não ia morrer ali caída e paralisada de medo e de fome. Sofá!!!!
Apoiei as costas no sofá e chorei um pouco de felicidade, ainda agachada consegui chegar na cozinha e para minha surpresa a cozinha estava remexida, tinha pratos caídos
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pelo chão a porta da geladeira escancarada e com restos de comida espalhados, uma vasilha de suco tinha sido derrubada deixando o chão molhado e melado. Salete? Esqueci por alguns instantes que o balcão da cozinha era baixo e me levantei tentando ver se Salete estava dormindo embaixo do meu escorredor. Lembrei da altura do balcão e agachei rapidamente. Não tinha conseguido ver se ela estava ou não no seu lar e precisei levantar e agachar algumas vezes para poder vê-la. Salete está lá, provavelmente viva.
O Bicho esteve em minha cozinha.
Fazendo provavelmente a mesma coisa que eu, procurando comida, fiquei espantada de não ter ouvido nada quebrar, nem o Bicho comer derrubando tudo, provavelmente isto tinha acontecido enquanto tinha desmaiado na sala. Será que o sangue minha cabeça era da batida? Colocar a mão e sentir desta vez o calo me tranquilizou.
Fui até o armário de baixo para encontrar comida e me sentiu uma idiota quando lembrei que só guardava panelas e produtos de limpeza ali. Toda a comida estava no armário alto pendurado na parede ou na geladeira. Na geladeira tinha sobrado pouca coisa. Precisava me levantar e pegar algo no armário. Por sorte parece que o Bicho não tinha mexido em nada da parte de cima.
Como é que ele sabia abrir a geladeira?
Levantei bem devagar por trás do balcão avistando o Bicho. Sem tirar o olho e com movimentos lentos alcancei a porta do armário. Queria olhar o que tinha dentro mas temia tirar os olhos da varanda, assim desviava o olhar para o armário e rapidamente voltava para o Bicho, até que consegui focar um pacote de bolachas. Num gesto rápido peguei a bolacha e sentei no chão, encostada no balcão da cozinha. Com as mãos tremendo tentei abrir o pacote, mas ele fazia barulho a cada tentativa, usei os dentes para cortar a embalagem minimizando o barulho que produzia aquele inferno de pacote.
Comi a primeira bolacha. Em 3 dias era a primeira coisa que tinha comido, como era bom, senti logo na primeira bocada a esperança e por alguns minutos me permiti sentir-me feliz. Aproveitei para olhar a as árvores ao lado da janela da cozinha e os raios de sol do fim da tarde que alcançavam a cozinha naquele momento. Tudo estava
silencioso, apenas o meu mastigar era ouvido e por isso resolvi controlar o desespero da fome e mastigar mais calmamente e silenciosamente.
Tentava enquanto comia pensar uma solução coerente para toda aquela confusão. Não poderia simplesmente sair, pois o Bicho estava na varanda bem em frente a porta de saída, se resolvesse pular uma janela ou dar a volta pela porta dos fundos da cozinha, teria que dar a volta e passar novamente pelo Bicho. Em volta, o mato, nenhum vizinho e sem carro. A vida que tinha pedido a Deus…que ironia.
A noite estava chegando e decidi que deixaria para pensar nisso amanhã, não ia mexer em nada na cozinha para não fazer barulho e correr o risco de virar alimento de bicho e, com certa resignação e confiança, levantei, peguei algumas latas de comida, salgadinhos e sucos (itens de sobrevivência fáceis). Caminhei devagar para o quarto, no meio do caminho encontrei com várias teias de aranhas que grudaram em meu rosto e perto da porta melequei o pé quando pisei numa centopéia…
Fechei a porta, ia trancar, mas como morava sozinha e nunca trancava, não tinha a menor ideia de onde estava a chave. Ah... no molho de chave da porta da frente, bem em cima do Bicho. Balancei a cabeça rindo e me lamentando da vida. Estava exausta, comi o salgadinho e ia abrir uma lata de milho, mas não tinha pego o abridor, meio
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chorando; bebi o suco. Tomei um banho com a porta aberta, escovei o dente e fui me deitar. Não havia mais nada para fazer.
Era o quarto dia desta situação, mas agora meio alimentada e hidratada, acordei com mais coragem abrindo a porta sem me esconder.
Ele estava lá. Tinha mudado de posição ficando um pouco mais dentro da sala. Enfim essa situação era insustentável, continuar agindo assim não o tiraria dali, precisava tomar atitudes diferentes. Fiquei em pé e andando naturalmente fui até a sala, um pouco protegida pelo sofá. O Bicho se mexeu e pela primeira vez olhou para mim.
Apesar do medo fiquei firme e o encarei. Ele tinha olhos doces e seus pelos, apesar de grosseiros, não eram assim tão assustadores. Percebi que ele era maior do que eu imaginava, se ficasse de pé provavelmente passaria meu tamanho, suas patas eram estranhas e com unhas quadradas. Mas seus olhos eram doces.
Caminhei para a cozinha de costas e para minha surpresa ele encostou a cabeça numa das patas e continuou olhando para mim. Bem, se ele de súbito a atacasse poderia fugir pela porta da cozinha dar a volta e sair pela estrada correndo. Mas apesar de todo o medo que tinha passado, neste momento estava tranquila, não encontrava naqueles olhos doces nenhuma intenção de atacá-la.
Comecei recolhendo as coisas do chão, sempre virando para ver se ele ainda me observava, peguei os restos de comida, varri tudo para o lixo e passei um pano, por alguns segundos durante a faxina até me esqueci que ele me olhava sem parar. Resolvi fazer um café e me sentei no banquinho tomando a primeira coisa quente em dias. O dia estava lindo o café delicioso e o Bicho já não era tão assustador.
Eu precisava começar a pensar o que fazer. Esse bicho era diferente dos demais que estavam por ali, ele era enorme, provavelmente selvagem, maior do que eu, não sei se eu poderia ou conseguiria viver com ele ali na minha varanda. Os outros não representavam um risco real, sim eles também eram selvagens, as aranhas, por exemplo, podem ser venenosas e até mais perigosas do que ele, mas uma simples vassoura ou chinelo, apesar de parecer cruel, punha fim na vida delas. O da varanda eu já não sabia…
O que eu sabia dele: era grande, dorminhoco, lento e gostava de comida de gente. Tinha que trabalhar um plano a partir disso para tirá-lo de lá.
Neste exato momento ele me olhou....
Ok, ele talvez tivesse poderes telepáticos, pois só parou de me olhar quando pedi, desculpas.
Tinha o dia inteiro para ir coletando dados e resolvi fazer uma lista sobre o que poderia fazer diante da situação. Andei até a sala, tranquilamente receosa e peguei caneta e papel para disfarçadamente bolar um plano para a retirada daquele bicho. Ele novamente olhou para mim…
Definitivamente ele sabia o que eu estava pensando e resolvi responder. - O que você quer que eu faça? Essa aqui é minha casa? Você está em minha varanda? Olha quanto mato lá fora? Lá é seu lugar, aqui é meu.
Subitamente ele se levantou e eu corri para o quarto, óbvio.
Fechei a porta e fiquei encostada segurando com o peso do corpo na espera dele decidi entrar e me comer, ou apenas estraçalhar, enquanto pensava o quanto eu era idiota. Porque resolvi que podia dialogar com um bicho estranho que para dizer a verdade eu nem sabia o nome direto? Depois que fiquei tomando café e o observando fiquei em dúvida se ele era o que eu pensava que ele era, ele parecia mais uma junção de bichos que
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eu conhecia do que um bicho só… As patas eram diferentes e ele tinha um rabo grande demais… Que bicho era aquele, meu santo Deus?
Após alguns segundos sem que nada acontecesse na porta, ouvi um barulho na cozinha. Ah, não, minha comida novamente??!?
Abri a porta só para confirmar o fato de que ele estava atacando minha cozinha novamente, fuçava por cima de tudo derrubando o que estava pela frente, eu olhava tudo pela porta entreaberta do quarto, o que mais eu podia fazer?
Bateu na geladeira, quebrou a porta do armário de baixo, jogou no chão todos os meus potinhos de tempero e mexeu nas panelas que estavam limpinhas e penduradas, fazendo-as cair e amassar. Derrubou os pratos que estavam secando no escorredor descobriu: Salete! Imediatamente ela nua e descoberta pulou desesperada para cima dele e para a minha surpresa ele levou um baita susto, caindo de costas para trás. Salete havia grudado em seu pelo e esperneava feito louca, ele também apavorado olhava para ela e não conseguia tirá-la de seu corpo. Neste momento não havia nada mais inteiro na minha cozinha e, no meio do quebra-quebra e dos barulhos, ele se desesperou e correu porta afora sumindo pelo mato e levando Salete consigo.
Tudo ficou em silêncio!
Após todas as imagens fazerem sentido em minha cabeça comecei a rir… Salete me salvou!!! Tão pequena e tão valente.
Corri e fechei as portas e todas as janelas, não sabia se o Bicho iria vencê-la e voltar para se vingar de todo o susto.
Passei o dia espreitando os olhos para o matagal em volta da casa, assustando com qualquer barulho estranho, mas até o final do dia nada de novo aconteceu. Já estava com minha cozinha arrumada, tinha feito um almoço com o que restava de comida em meus armários e no final da tarde olhando Onofres e Izildas tomei uma decisão.
Cacei todos os insetos e bichos que estavam por ali, foi uma verdadeira guerra de afastar móveis e dar vassouradas para todo o lado, lavei o banheiro e expulsei lagartixa, centopeias, matei as aranhas com gosto, até que não existisse nenhum traço de bicho em minha casa.
Sei que talvez me achem ingrata, afinal foi Salete que me salvou!
Mas agora a casa era minha!
Uma semana depois, invadida por uma solidão gigantesca, fiz minha mala e nunca mais voltei. Anos mais tarde, imaginava se Salete ainda estava viva vivendo em comunhão com Vitor.

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